A Voz do Muezim
Melbourne,
manha fria de outono. Não muito longe da zona de expansão o minarete da
mesquita sobressai. Desconforto do olhar, as linhas ferroviárias suburbanas,
que se cruzam no entorno da cidade, incomodam. Mais adiante, observo o largo
patio ladrilhado do templo islamico, ora ao meio-dia, desolado, mostra-se um
baldio de sombras. Ja me assustam os mitos, duendes e elfos, muito além do
conto, e verdades, que, atraves de veus condenados poderao falar. Louvados
sejam os saudaveis cavalos da realeza.
Aquela hora do dia o sol ja
dividia sombras de duvidas. De longe avistava o perfil conhecido daqueles
telhados pontudos das barracas de frutas. Costumava chegar cedo ao mercado.
Mas, desta vez, nao se ouvia as vozes de seus usuais mercadores. Pouca gente.
Os guardas da saude sinalizavam distancia restritiva. Contagiante desmaio de
alegrias.
Atraz da mascara, a voz
arrastada, a voz de incompreendidos. Os que vendem e os que compram, no pigarro
seco entendida divergência de pensares. Regras, códigos e sinais, opiniões e
convicções guardam discrepancias gramaticais. “Merci, madam... Thanks, my
dear... Como estas senora… Grazie mille…” Sentia falta daquela costumeira polifonia
no mercado.
Purpurina de tardes
esplêndidas, grandeza de lâmpada solar, essa magia cosmica que as vezes revela
o lado obscuro de pratas perdidas. Lembrava-me de alegrias passadas, quando
quermesses faziam o centro das festas de largo. Igreja iluminada, o coreto e a filarmônica. Muita gente. Alfazemas
e sorrisos. Abraços e apertos de mão. A malícia do olhar, e o lirismo todo.
O silencio as vezes podera nos mostrar o
barulho de coisas apagadas. Na verdade, devolvendo uma parte do nosso eu, esse frágil
inquilino, o silencio fala. Sim, atraves
de caras imagens que se perderam na estrada do tempo e que por vezes nos vem a
tona. Talvez a completar um certo vazio de anseios nesse mundo caduco de falas sem retorno. Portas
encontram-se fechadas. Entre a morada do passado e a labuta da mudanca para
novo destino, o homem, frente ao mundo de forcas em conflito, mergulha, quanto mais fundo, mais longe de si
mesmo.
A botica. A homeopatia. O antídoto, e os
males do tempo. A cura pela misericórdia, o meio compartilhado. Alaúza,
batuque e cantoria. Turbantes e trançados. Pendor de mãos. Ritmo da cor, rima
de dor. E na glória da raça, a fe que a todos unia. Pedaço da peça maior. Salvador,
Desvio de luzes, sombras oportunas. Canção desse tempo, oração desencontrada. Rococó
desmantelado pelo tempo, Baixa dos
Sapateiros, e seus mercados coloridos de alegrias. Festa de todo-dia. Contorno suas afamadas esquinas e alamedas
de seus muitos bazares e quitandas. Escuto
aquele chamado estimado: ‘ Pode
entrar, faça favor, Salim fazer preco bom...’ O libanes e o armenio, por todos chamados de
turco, e o madrilenho ao lado do portugues, Galego, na lingua do povo. Nesses redutos de muitas vozes, mesquitas de mercadores baianos, sua
voz dentre outras tantas ressaia, - voz de muezim. Tudo aquilo se misturava, tudo ali se
harmonizava, o cheiro do acaraje apimentado e do quibe regado a cominho. Tudo alí fazia sentido, e agora, em calmo momento, tudo isso me vem
a alma falar o alegre idioma da minha terra natal distante.
Um bate-papo,
o cafezinho no bar do galego logo ao lado. O conluio, e o cuspe ao batente.
Fuxicos e maledicências. Chuva da tarde, pedra lisa molhada, e no descuido o
escorregão amparado. Não! Vocês não estão sós.
mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, para uma rua
inacessível a todos os pensamentos, real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa, como o mistério dos vintens e de fervorosas juras
de amantes, atraz de portas fechadas,
sob as pedras de suas calcadas e sob a veste e dos seres, com a
morte do vico, e a alegria nativa de homens, vejos nas paredes destratadas o
limo da humidade do tempo, no bafo de muitas vozes, e naqueles cabelos brancos,
a marca da saudade, carro-chefe do destino, a conduzir o homem pela estrada do
nada.
o esboco,
a cor se afirmara no desenho confuso da passagem de geracoes inumeras desta
esfera. Nenhum gesto deveria ser esquecido, nem um traco de bondade, no melhor
sentido de vida.
O esboco e a cor se afirmam no desenho confuso da passagem de geracoes inumeras nesta esfera. O abraco espontaneo, gesto fraternal que por vezes se perde, e na voz que sai da garganta, ausente traco de bondade. Conflito de geracoes, ou melhor, acontecimentos temporais, que se mostram como perturbação perpétua, puro conflito de forças desse sofrido ser no estar. Ah, esse mundo é mesmo um eterno vir-a-ser!
Lamento calada palmeiras cortadas, e vento sumido ao baldio. Enxergo atrás de porta fechadas o fantasma de sapatos esquecidos, e o descanso aborrecido, do que ja foi antes. Mas, não! Aquele mercador de panos nao morreu. Rolo e driblo tapete à porta, minha estrela ao cordel seguro. Este lugar, conheço-o muito bem. O poente não me contradiz. Ausente é a porta de fundos, mas o velho cachorro cansado, ainda me aquece o batente.
Amalia Grimaldi, Cronicas do meu tempo. Melbourne, Julho, 2020.